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O filho que cuidou sozinho dos pais tem direito a uma parte maior da herança?

Esta é, talvez, uma das questões mais sensíveis e recorrentes no Direito de Família e Sucessões. A dor emocional da perda dos pais vem, muitas vezes, acompanhada de um profundo sentimento de injustiça.

É comum que, nos últimos anos de vida dos genitores, apenas um dos filhos assuma o cuidado. Seja renunciando à própria carreira para oferecer companhia, seja administrando o patrimônio e a rotina médica, esse filho se vê sobrecarregado, enquanto os irmãos, por vezes, se mantêm ausentes.

Quando chega o momento do inventário, a pergunta é inevitável: Esse esforço me dá direito a uma fração maior da herança?

A resposta da lei é complexa e divide-se entre a regra geral e as exceções que dependem de planejamento.


1. A Regra Geral: O Princípio da Igualdade da Legítima

Sob a ótica estrita da sucessão, a resposta direta é não. O cuidado, por si só, não altera a divisão da herança.

O Código Civil, nos artigos 1.845 e 1.846 determina que os descendentes (filhos) são herdeiros necessários. Isso significa que eles têm direito, obrigatoriamente, à metade de todo o patrimônio dos pais, o que é chamado de "legítima".

Por lei, esta legítima deve ser dividida de forma igualitária entre os filhos. A legislação não prevê que o "mérito" ou o nível de dedicação de um filho aumente ou diminua sua quota-parte.

O cuidado, embora louvável, é visto pela lei não apenas como um dever moral, mas como um dever jurídico de auxílio mútuo, previsto na Constituição Federal em seu artigo 229. O cumprimento desse dever por um, e o descumprimento por outros, não altera a matemática da partilha.


2. Como os pais podem beneficiar esse filho?

Se a regra é a igualdade, como os pais podem, em vida, recompensar ou proteger o filho que lhes dedica cuidado exclusivo?

A lei permite que os pais disponham livremente da outra metade de seu patrimônio, a chamada "parte disponível". Eles podem usar essa fração para beneficiar quem desejarem, inclusive um filho específico.

Existem duas ferramentas principais para isso:

I. O Testamento

Os pais podem elaborar um testamento deixando a totalidade de sua "parte disponível" (os 50% livres) especificamente para o filho-cuidador. Nesse cenário, ao final do inventário, este filho receberá:

·                     Sua parte da legítima (igual à dos irmãos);

·                     MAIS a totalidade da parte disponível (deixada em testamento).

Na prática, ele irá receber uma fração significativamente maior da herança total.

II. A Doação em Vida

Os pais também podem fazer uma doação em vida para esse filho.

Contudo, é preciso um cuidado técnico crucial: toda doação de pai para filho é, em regra, considerada um "adiantamento da legítima" (art. 544 do Código Civil). Ou seja, no inventário, esse valor doado seria "trazido à colação" (contabilizado) e descontado da parte daquele filho.

Para que a doação beneficie efetivamente o filho-cuidador, ela precisa ser feita com uma "cláusula de dispensa da colação". Isso significa que os pais devem registrar expressamente no documento de doação que aquele bem está saindo da "parte disponível" do patrimônio deles e não representa um adiantamento da herança.


3. Uma Tese Doutrinária Avançada (Maria Berenice Dias)

Além das ferramentas de planejamento, existe uma corrente jurídica moderna que busca uma solução mais profunda para essa injustiça.

A renomada jurista Maria Berenice Dias, em seu "Manual das Sucessões", defende uma tese vanguardista. Ela sustenta que, em casos extremos de dedicação integral, nos quais um filho abdica de sua própria vida (profissão, projetos pessoais) para cuidar exclusivamente dos pais, pode-se estar diante de uma "entidade familiar parental". Segundo essa doutrina:

“Não há como receber tratamento sucessório igual aos irmãos que não assumiram o encargo do cuidado. Há que se reconhecer a constituição de uma entidade familiar e, como tal, atribuir as sequelas sucessórias cabíveis: meação do patrimônio amealhado durante os anos em que houve a dedicação aos genitores, o direito de concorrência sucessória frente aos demais irmãos. ”

O que isso significa? Esta tese propõe que o filho-cuidador, em vez de ser visto apenas como herdeiro, seja equiparado (em direitos) a um cônjuge ou companheiro, podendo ter direito à meação (metade dos bens adquiridos durante o período de cuidado) ou a concorrer com os irmãos por uma quota maior.

É fundamental frisar que esta é uma tese minoritária e inovadora, ainda não consolidada pelos tribunais superiores. Ela representa uma linha de argumentação jurídica complexa e de alto risco processual, mas que aponta para uma modernização do Direito de Família e Sucessões.


Conclusão

O filho que cuidou sozinho dos pais não tem direito automático a uma parte maior da herança. A regra legal é a divisão igualitária da "legítima".

Ele só receberá uma parte maior se seus pais, em vida, assim o determinaram por meio de testamento ou por uma doação em vida (feita corretamente, saindo da parte disponível). Na ausência desse planejamento, resta a possibilidade de discutir teses jurídicas avançadas, como a defendida por Maria Berenice Dias, embora estas ainda não sejam o entendimento padrão da Justiça.

 

Gislaine Comparsi

OAB/RS 135.384

@gislainecomparsi.adv


Gislaine Comparsi

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